Milonga de Amor

quarta-feira, 18 de junho de 2008


Sentei ao lado de uma garota com seus fones de ouvido absurdamente no último volume. O ônibus inteiro ouvindo aquela ladainha, propaganda que não terminava nunca. Eram móveis, farmácias de manipulação, show da Joss Stone. Os passageiros pediam por clemência, das duas uma: ou baixava o som ou que a rádio providenciasse um som decente. E logo. Mas não. Os comerciais continuaram. De repente, a garota cantarolou baixinho:


- Fui comprar uma sala e me dei muito mal, com essa mobília antiga ficou um castelo medieval!Meu quarto moderno não combina comigo, que inferno, eu nem acredito...
Mas agora achamos nosso estilo com os móveis não sei o que, ficou tranquilo.


Este é o momento em que se pega o walkman e joga janela afora. Eu rezei para que ela descesse na próxima parada, sem perceber que as propagandas haviam cessado. O locutor anunciou algo que não entendi e a viagem seguiu-se tranquila por um ou dois minutos até que os acordeons e bandeneons do tango invadiram o meio de transporte. O chão adquiriu ladrilhos brilhantes, dos quais nem Valentino atreveria-se a dançar. Uma onda lasciva chegava sem pedir licença, derrubando uns, levantando outros, despertando corações despedaçados. A garota puxou minha mão e levou-me em direção aos ladrilhos. Eram dois espíritos dançando, as mãos entrelaçadas, que subiam e desciam. As janelas estavam todas abertas, o vento quase cegava-me. O mundo girava, vi senhores idosos rodando guriazinhas, idosas curvando-se ainda mais para bailarem com crianças. A música parou assim como começou: do nada. Voltamos aos nossos lugares esboçando sorrisos de plástico, como quadros de Leonardo da Vinci. O que viria a seguir? A mulher mais bonita do ônibus resolveu recomeçar a festa. Loira, dentes brancos, casaco de alpaca rosa. E em sua boca repousava um batom vermelho que lhe nos deixava com a sensação de que gastou tudo em uma única aplicação. Levantou-se com graça e prostou-se no lugar mais alto do ônibus, murmurando clamores inflamados de graciosidade. Sua voz nos hipnotizou. Um homem esmagou sua mão no canto do banco tamanha a descontração que a loira nos causava. Libertou-se do casaco rosa como quem rasga a pele em busca de alívio para a dor. Que fetiche, toda de preto. Eram coisas demais para se prestar atenção. Alguns olhavam para suas pernas equipadas com uma meia calça que lhe saltava as coxas e outros prestavam atenção no conjunto da obra. Estalou os dedos e deles vieram uma chuva de caras elegantes e engomados. A loira não nos deixou interagir na situação, apenas que olhássemos bestas para sua beleza que parecia saltar aos olhos. O dançarino menos boa pinta a beijou e ela sumiu-se junto com a poeira do ônibus.Num impulso descontrolado tirei a garota ao meu lado para dançar. De novo. Agora sentia a pressão de seus quadris sob os meus, girávamos, dois pra cá, dois pra lá. Troquei de parceira várias vezes, beijei todos os tipos de rostos, dos mais lisos aos enrugados.

E a garota foi embora com seu walman mágico.

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