Tudo vira bosta

segunda-feira, 7 de abril de 2008


De repente, peguei aquele caderinho escrito "passado". Abri-o. Senti o cheiro de café fresco, a água mineral a enxarcar meus pés, o abajur de bolinhas ruluzentes no escuro, as manhãs brancas e o sol que fazia a mesa da sala de jantar brilhar. Fui abduzida, como o Harry Potter entrando dentro daquele diário e por alguns segundos pisei novamente naquele chão de madeiras fortes e escuras, pisei não, tinha certeza de que flutuava. Abri os olhos, senti-os empapados, minhas pálpebras ardiam. Ali estava a prova de como chutar meu passado seria mais difícil do que se podia imaginar. Tirei um pedaço de pele do dedo na tentativa de acalmar-me. Não deu certo. Que sacolinha.

Mas a decisão estava colada na minha testa, então voltar atrás seria como querer viver dentro daquele livro. Num impulso frenético rasguei a primeira página do caderninho. Senti uma parte do cérebro sendo afetada. Eram as lembranças indo embora. A empolação invadiu-se, eu estava tendo uma amnésia consciente! Rasguei mais uma. Lentamente o cabelo loiro dela desaparecia, tornava-se mais um daqueles cortes de cabelo comuns entre a sociedade. Logo me dei conta de que se rasgasse uma de cada vez, a tortura seria maior e eu estava desfazendo-me de uma parte de minha vida, isso era para ser um momento feliz. Tive A ídéia. Corri rapidamente até a cozinha, morrendo de medo de esquecer do que pensei. Acendi um Fiat Lux (FAÇA-SE A LUZ MEUS AMIGOS!) e taquei fogo no resto do livro. Minha cabeça ficou leve como uma pluma e pensei que nenhuma droga poderia dar-me a sensação que estava tendo naquele momento. O plano ainda não havia sido concluído. Faltava a parte mais importante.

Na semana passada, fui a livraria e comprei um outro caderno. Ele tinha folhas escuras, recicladas. Estava fazendo a minha parte na preservação ambiental. Guardei-o no fundo do guarda roupa, esperando a hora, não vendo a hora de poder usá-lo. E finalmente este momento chegou. Joguei as cinzas do outro caderno ao vento, não queria correr o risco de achar as lembranças no lixo e ter uma recaída.

Tirei aquela preciosidade do armário, peguei minha caneta azul fosforecente que acompanha-me desde o primeiro ano e com a letra mais bonita que poderia fazer escrevi: presente. Depois, coloquei uma música cheia dos violinos, fui para o meio da sala e tele transportei-me para cima de um penhasco. Apertei o caderno contra meu corpo. Flutuei de novo. Voltei a realidade. Guardei a relíquia em algum lugar muito escondido. Só estou esperando as folhas acabarem (duvido muito, o caderno tem validade de 30 anos) para queimá-lo e comprar outro. E o ciclo vai fechando-se.

A saudade é um pavio que não queima mais.

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